quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Filme em destaque: A COR DA ROMÃ


Em seu filme A cor da romã (1968), Sergei Parajanov trabalhou coms formas de narrativa, teatro e figuração da tradição bizantina. Nesse arsenal achou um jeito de fazer filmes mais arejados. De formas distintas, outros eslavos trabalharam com o seu arsenal histórico. Penso em Maliévitch, Béla Bartók, Penderecki e, mais recentemente, Ilya Kabakov (sobretudo no seu trabalho com sonhos, exposto em 2005 na Serpentine Gallery). O curioso é que o artista parece muito mais tradicional do que o cinema considerado tradicional. Acredito que com isso ele trabalha sentidos do moderno como, cá entre nós trabalhou um Ariano Suassuna, por exemplo.

O filme de Parajanov entrelaça vida e obra do poeta armênio Sayat Nova. Como em um poema épico, a saga acontece em uma sucessão de figuras. O filme é separado em episódios simbólicos ou revelações. São imagens com a câmera parada, muito parecidas com as figuras da tradição que ele retoma. O filme é uma sucessão de iluminuras entremeadas por som e texto.

Não são episódios da vida do escritor. Por isso não seguem nenhuma ordem temporal rígida. Seguem uma ordem de descobertas de nova. O mundo parece se aproximar e se afastar dele. Nessa procura de religar-se ao sentido das coisas, Parajanov faz um filme em verso. Aliás, versos metrificados. Por vezes, o filme se parece uma parábola, com revelações estéticas e místicas; em outras, um caminho da sabedoria (quase como os escritos de Santo Agostinho). Uma infância cheia de viço se perde nos caminhos da vida. A poesia surge como uma forma de manejar os significados depois dessa fratura incurável.

Nova é um personagem torturado. Que teve a vida torturada. O saber o afastou da vida que ele levava. As obrigações o distanciaram dos significados que ele compartilhava e recriava com o povo que viveu com ele até a sua juventude. Através da poesia ele quer se reaproximar da vida do passado, quer voltar a uma vida simples, compartilhada. Essa busca ele empreende até a morte. A arte é um modo de recuperar o seu destino. De fazer com que as coisas voltem a ter sentido.

Texto completo, de autoria de Tiago mesquita, em: http://guaciara.wordpress.com/2009/03/03/parajanov/

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Filme em destaque: A COR DA ROMÃ


Impossível passar ileso por A Cor do Romã de Sergei Paradjanov; a experiência é no mínimo arrebatadora. Através de uma narrativa visual vertiginosa, a vida do poeta Sayat Nova se torna matéria. Os planos fixos de Paradjanov atiram o cinema num regime de imagem e de duração sem similares. Um cinema de composições alegóricas complexas, mas também de temperaturas e estados da matéria (daquilo que precede o simbolismo, por assim dizer). A cor é mais e menos do que ela mesma: dá forma a um pensamento sobre o universo artístico e histórico de Sayat Nova, mas preserva ao mesmo tempo seu estatuto primeiro, bruto e assignificante. Paradjanov visita um subterrâneo do cinema (no sentido de um lugar pouco explorado) e escava suas potências. O filme é como um baú de tesouros e relíquias; o incrível acervo de utensílios, figurinos, tecidos, apetrechos, instrumentos... toda sua caixa mágica de ferramentas paira bem acima de um prazer museológico. São signos perdidos no tempo, transformados em puros objetos icônicos – prevalece a platitude dos elementos plásticos. A história da arte (a história dos homens) vive uma profunda e irremediável amnésia. O passar do tempo esvazia tanto a potência simbólica de um signo artístico, desplugando-o do tempo histórico que comunica, quanto a trajetória dos povos vencidos, que são jogados em uma vala coletiva. Se a máquina do tempo paradjanoviana promove um retorno ao iconismo medieval, ela o faz pela reconquista de um certo tipo de representação do espaço, e através de uma construção de imagem superpovoada de visões, figuras, referências, objetos de antiquário (sem que isso implique barroquismo ou maneirismo). As composições dos planos em A Cor do Romã trazem também a presença e a influência crucial da tapeçaria, principal forma de arte medieval ao lado da pintura. Desaparece a profundidade, desaparece o canal óptico que relaciona o próximo e o distante. Ressurge uma experiência espacial direta, chapada, uma composição em horizontal e vertical (em vez de superfície e fundo). É um espaço n-dimensional, sem parâmetro de distância – porque é intuído, é obra de visionário, é o testemunho de uma zona de percepção situada para além da realidade física. O filme não revela o olhar de alguém que sai do nosso tempo e aporta à Idade Média com uma câmera de cinema. Ele sugere, antes, como seria se alguém da Idade Média tivesse uma câmera de cinema. Algo como um elo perdido entre o sentimento místico dos afrescos medievais e os tableaux vivants de Raoul Ruiz em A Hipótese do Quadro Roubado.

Os rituais religiosos e a profanação artística se fundem em um só traço-movimento: Paradjanov consegue ser simultaneamente um bruxo e um artista sacro. O que há para ver nas suas imagens? Algo mais para além das imagens? Algo que, em outra época, em outro meio e suporte, Giotto ou Fra Angelico quiseram também mostrar? Ele reformula a questão do que está ou não está presente no visível, essa partilha misteriosa da imagem, seja ela a via de acesso a uma ordem transcendental ou não. Há um dado importante sobre esse aspecto, que diz respeito ao trabalho dos atores. O lado teatral de A Cor do Romã é um acréscimo impressionante. Sua dramaturgia encarna uma resposta (com toda violência que isso implica) à proibição do ator no universo cênico medieval. As mesmas alegorias presente nas igrejas, nas grandes decorações murais, não eram encenadas com figuras de carne e osso. A arte que almejava o divino não podia ser mediada por corpos reais, mas somente pela figuração icônica. Paradjanov vai então aonde a arte medieval não se permitia ir, nutrindo-se da representação teatral para evocar aquele mesmo universo de que ela havia sido banida. Em A Cor do Romã, esse teatro proibido encontra sua liberdade na imagem de cinema.

Luiz Carlos Oliveira Jr, Contracampo

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Filme em destaque: PRELÚDIO PARA MATAR


Carpenter entrevista Argento (em inglês) no Dark Dreams


Argento sempre foi comparado com Hitchcock pela imprensa americana, inclusive sendo apelidado, por muito críticos, de "Hitchcock italiano". Era considerado um herdeiro do talento e do virtuosismo do cineasta inglês antes de surgir o americano Brian DePalma com seus tributos assumidamente hitchcockianos. Embora a comparação com a obra do velho Alfred não seja nada pejorativa, a verdade é que o trabalho de Dario Argento tem vida própria. Ele deu um novo verniz (e até certo "glamour") a um dos subgêneros italianos mais desgastados e populares, o "giallo", tipo de filme de suspense onde maníacos com traumas de infância, normalmente vestindo chapéu, casacão e luvas de couro, exterminavam belas garotas com facas brilhantes e pontiagudas. O apelido (giallo significa "amarelo", em italiano) evoca a cor da capa de antigos livros vagabundos com histórias de mistério e horror, lançados a preços populares nas bancas italianas.

O cineasta teve uma bem-sucedida incursão pelos gialli na sua chamada "Trilogia dos Animais" (graças ao nome de animais nos títulos): começou com O PÁSSARO DAS PLUMAS DE CRISTAL (1970), continuou com O GATO DAS NOVE CAUDAS (1971) e encerrou com QUATRO MOSCAS SOBRE VELUDO CINZA (também de 71). Concluída a trilogia, Argento achava que era hora de mudar de ares - principalmente devido ao fracasso comercial de QUATRO MOSCAS..., que até hoje não foi devidamente relançado pela sua distribuidora, a Universal. Inicialmente, ele tentou levar o giallo à TV italiana, através de um programa produzido por ele para a emissora RAI, intitulado LA PORTA SUI BUIO. Eram curtas histórias de mistério com menos de uma hora de duração, algumas dirigidas pelo próprio Argento, outras por cineastas italianos como Luigi Cozzi e Mario Foglietti. Encerrada esta experiência televisiva, Dario tentou mudar de gênero no cinema; mas a experiência fora da sua especialidade (suspense e violência) não foi boa. Filmado em 73, LE CINQUE GIORNATE enfrentou todo tipo de problemas, começando com desistência de atores e terminando com críticas demolidoras à produção - o próprio Argento faz coro e considera este o seu pior trabalho.
PRELÚDIO PARA MATAR surgiu em 1975 e foi inicialmente concebido como um quarto episódio com nome de animais no título, ampliando sua famosa trilogia para uma quadrilogia - o nome de trabalho era "O Tigre dos Dentes-de-Sabre". Depois, Argento preferiu desvincular PRELÚDIO PARA MATAR de seus primeiros trabalhos e fazer algo completamente diferente. Com a palavra, o próprio Dario (em frases retiradas da entrevista que circula no DVD lançado nos Estados Unidos pela Anchor Bay): "Quando eu fiz QUATRO MOSCAS NO VELUDO CINZA, comecei a pensar que se fosse dirigir um thriller novamente, faria ele diferente. Por isso PROFONDO ROSSO traz uma nova maneira de usar a câmera. Pode até parecer um filme bem mais sangrento e violento também, mas não é verdade. Ele foi feito como se fosse um pesadelo, por isso certas coisas são exageradas".

Em relação aos trabalhos anteriores, percebe-se claramente o progresso e a maturidade de Argento como cineasta e principalmente como contador de histórias. Embora eu seja um grande admirador da obra de Dario, PRELÚDIO PARA MATAR será, provavelmente para sempre, meu filme preferido do diretor. Pode até soar meio clichê, mas Argento, neste seu retorno apaixonado ao gênero que o celebrizou, parece um pintor concebendo uma tela cheia de detalhes. Em muitos momentos, as cenas lembram uma pintura - onde o vermelho profundo ("profondo rosso") se destaca em poças de sangue, cortinas, paredes... O próprio Argento considera PRELÚDIO PARA MATAR sua obra mais famosa e mais bem-sucedida.
Ele nasceu de uma bem-sucedida parceria de Dario com o roteirista Bernardino Zapponi, um contumaz colaborador de outro cineasta italiano que nada tem a ver com horror e violência: Federico Fellini. A única incursão de Zapponi no gênero fantástico foi a adaptação de um conto de Edgar Allan Poe que Fellini dirigiu na clássica antologia HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS (ironicamente, o próprio Argento também adaptaria um conto de Poe, "O Gato Preto", alguns anos depois, em DOIS OLHOS SATÂNICOS). Foi graças ao trabalho de Zapponi naquela adaptação de Edgar Allan Poe que Dario convidou-o para escreverem PRELÚDIO PARA MATAR em conjunto; inclusive Dario declara que, hoje, não sabe dizer quanto do roteiro é invenção dele e quanto foi criado por Zapponi, tal a integração entre as duas mentes criativas. Na entrevista que acompanha o DVD da Anchor Bay, Bernardino Zapponi tenta elucidar a dúvida: "Argento surgiu com a idéia de um congresso de parapsicologia, onde a médium sente a presença de um ser diabólico. A partir daí, começamos a escrever a história. Tem muitos elementos que remetem à infância, como a criança, o boneco, a cantiga infantil, a música do Goblin... E a idéia da morte no elevador surgiu aqui na minha casa. Eu lembro que Dario observava o velho elevador do prédio com muito interesse, fascinado pelos seus movimentos".

Texto originalmente publicado por Felipe M. Guerra no bocadoinferno



Filme em destaque: PRELÚDIO PARA MATAR


Argento se despedia dos giallos simplesmente com uma obra prima. De estética gráfica fabulosa, manteve o mesmo empenho na maquiavélica trama de violentos assassinatos. Há várias pistas, algumas reais, outras apenas para nos ludibriar, mas sempre coerente. Não é daqueles filmes onde no fim descobre-se o culpado, sendo que isso tanto fazia, poderia ser o leiteiro assim como a freirinha histérica... Inclusive, e isto é realmente uma ousadia, é possível vislumbrar a face do criminoso logo na primeira morte. Portanto, olho vivo! A trilha sonora psicodélica e doce da banda Goblin contrasta tenebrosamente com todo aquele sangue vermelho fosforesceste, e é também digna de se ter na coleção. Ao testemunhar crime brutal de uma parapsicóloga, pianista inglês vê-se envolvido com serial killer que pode ser qualquer um à sua volta. Como os policiais são uns bananas, arregaça as mangas e vai ele mesmo tentar desvendar porque e quem estará por traz de tanta brutalidade ao som de uma cantiga de ninar. Seguindo à risca o estilo dos livros policiais vendidos a preços populares na Itália, e que por terem capas amarelas ganharam o apelido de giallo, Argento demonstra um controle técnico beirando o doentio, seja visualmente quanto no roteiro. O diretor, merecedor do título de mestre, toca em vários assuntos que usaria em seus próximos trabalhos, como os poderes telepáticos dos insetos, e a sobrenaturalidade, tema de todas as suas películas a partir de Suspiria. Nada está ali à toa e por mais elaborado não deixa de ser extremamente popular. Assim como os melhores de Hitchcock que, aliás, teria dito brincando com as comparações, após assistir Prelúdio Para Matar: “Este jovem italiano está começando a me preocupar”.

Texto originalmente publicado por Miguel Andrade no Cinemorama

Filme em destaque: PRELÚDIO PARA MATAR


Eu não era tão fã do Argento. Achava seus filmes over demais e não entendia o que diabos viram de tão interessante em obras como "O pássaro das plumas de cristal" e, principalmente, "Phenomena". Até então, os filmes do italiano eram sinônimo de trilhas mal escolhidas e cenas histéricas apoiadas por diálogos podres, dignos dos piores momentos de "A turma do Didi". Eu não via horror, mistério, thriller ou algo do tipo.

Ai veio "Suspiria". Pensei "eita porra, ai tem um negócio foda!". A história continuava tosca, os diálogos também, mas havia um poder na imagem, uma força escondida ali naqueles quadros, naquelas cores e no aspecto surrealista que me pegou de jeito. O filme parecia um sonho ruim, um pesadelo. As cenas ficaram na cabeça.

Quando assisti a primeira cena de "Prelúdio para matar" eu vi a luz. Ou melhor, vi a composição, as cores, o plano escolhido, as sombras. A música! Sim, havia coisa melhor que "Suspiria", pensei. E ai o filme foi passando, as coisas foram acontecendo e, quando dei por mim, notei que estava sendo estuprado cinematograficamente, a 24 quadros por segundo. Tudo o que era ruim, tosco e grosseiro nos filmes do Argento estava funcionando perfeitamente, fazendo as bases para a construção de uma obra que desafia, cheia de camadas de mistério e interesse. O assassino importa tanto quanto o aparato utilizado para mostrar os assassinatos, a investigação. Coisa do outro mundo.

Continuo odiando com todas as minhas forças "Phenomena", mas "Prelúdio para matar" é uma aula de como fazer Cinema.



terça-feira, 3 de novembro de 2009

Filme em destaque: CURE

"O japonês Kurosawa tem nome de mestre e faz filme de terror onde menos é mais. Mesmo tendo sido feito três anos atrás, o filme de horror “Cure” de Kiyoshi Kurosawa talvez se torne um dos melhores lançamentos do ano. Melhor não no sentido Oscar, nem à moda dos filmes de arte estrangeiros ou naquilo que os autores independentes cansam de buscar. “Cure” viaja num caminho diferente - o caminho por onde passeiam Fritz Lang ou Edgar Allan Poe. No mundo de Kurosawa, ninguém está a salvo, muito menos seu protagonista. Takabe (Koji Yakusho de “Dança Comigo?”), um policial de Tóquio, começa a temer objetos do dia-a-dia como um copo de água, um isqueiro ou uma lavadora de louça, e o público embarca junto. O público também começa a questionar a força do próprio limite moral (embora isto só aconteça depois da saída do cinema). E finalmente, Kurosawa aponta a diferença entre filmes de terror confortáveis e os desconfortáveis, categoria a qual “Cure” pertence. (Eduardo Cerqueira)"


indieWIRE >> Você disse que considera “Cure” seu primeiro filme “real”, mesmo tendo feito dez filmes ou mais antes.

Kiyoshi Kurosawa >> Não disse que “Cure” era meu primeiro filme “real”, mas que ele foi o primeiro dos meus filmes que me permitiu viajar, e me fez perceber que meu trabalho era uma moeda internacional que podia ser compreendida e apreciada por pessoas fora do Japão. Antes de “Cure”, mesmo com orçamentos limitados e atores japoneses, eu falhava ao tentar fazer filmes tipo Hollywood. Mas ao fazer “Cure”, percebi que poderia fazer meu próprio tipo de filme, feito no Japão e sem imitar os filmes hollywoodianos.

iW >> Você acha que o grande público americano e possivelmente o japonês são muito limitados e que é inútil tentar agradá-los?

Kurosawa >> A maioria do público de cinema japonês prefere filmes de Hollywood ou assistir dramas na TV, uma atitude bastante passiva em relação ao cinema. Mas começo a perceber, no Japão e no resto do mundo, que existem pessoas que realmente desejam ter uma relação mais ativa com os filmes que vêem. Eles observam tudo, inclusive os pequenos detalhes e se esforçam para ter seu próprio entendimento do filme. É para essas pessoas que eu faço meus filmes.

O resto da entrevista você pode ver no Zeta Filmes